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OS SACERDOTES DO INFINITO

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

OS SACERDOTES DO INFINITO - Prólogo e 1º capítulo.

Prólogo



Quinta-Feira, 20 de dezembro de 1990



A força da explosão foi de grande proporção! O fogo se alastrava por toda a casa e os bombeiros trabalhavam bastante para apagar as chamas que pareciam lutar contra eles. As esperanças de resgatar alguém com vida ficavam cada vez mais longe da realidade. O fogo ardia tanto por dentro quanto por fora naquela mansão de dois andares. Era uma casa de alvenaria com detalhes em madeira nas janelas, portas e varandas. A telha colonial dava o toque final daquelas construções modernas da região de Vila Velha, ES.

Assis era o caseiro da família. Cuidava dos jardins, da limpeza do quintal e de certos tipos de manutenção em hidráulica ou eletricidade. Na verdade, Assis era o tipo do empregado que, se algo estivesse errado e ao seu alcance, ele consertava. Tremendo dos pés à cabeça, ele aproximou-se de um dos bombeiros e, com o rosto estampando pavor, perguntou:

– Conseguiu salvar alguém, meu amigo?

O bombeiro, que estava enrolando uma das mangueiras de um carro-pipa, olhou para o rosto de pânico de Assis e respondeu num tom de lamento:

– Infelizmente, eu acho impossível a sobrevivência de alguém diante de tamanha explosão! E depois o fogo parecia incontrolável, agora é que estamos conseguindo tomar o controle da situação. O senhor é parente?

Um policial aproximou-se, interrompendo a resposta de Assis ao bombeiro, porém coincidindo com a mesma pergunta:

– Com licença, o senhor era morador da casa ou parente?

– Não, eu trabalhava para a família.

O bombeiro se afastou, dando continuidade ao seu serviço e o policial permaneceu, de forma gentil, convidando Assis para conversar na delegacia. Assis assustou-se:

– Mas, senhor, eu nunca faria uma coisa dessas. Essa gente me acolheu como se eu fosse um parente... E também era minha única forma de ganhar meu pão de cada dia... Agora, eu não tenho mais emprego e principalmente essa gente que...

Assis estava extremamente nervoso, interrompendo seu diálogo várias vezes, e o policial, aproveitando-se de uma dessas interrupções, explicou para Assis o motivo do convite, tentando acalmar o homem:

– Calma, meu senhor, eu não o estou convidando na condição de suspeito, nós nem sabemos se a explosão foi criminosa ou não. Só precisamos de alguém próximo, para colher informações sobre as pessoas que moravam na casa, e também se tem parentes nas proximidades, para ajudar nas investigações.

Agora entendeu, senhor...?

– Assis, meu nome é Assis, entendi, sim senhor, e se o senhor quiser, posso ir agora mesmo!

– Não, não é necessário, já passam das dez da noite – aliviou o policial. – O senhor pode comparecer na delegacia de Vila Velha amanhã pela manhã?

– Sim, senhor, eu vou estar lá amanhã!

O fogo estava praticamente apagado, restando apenas algumas pequenas brasas e labaredas espalhadas pela casa. O fator tempo também contribuiu um pouco, pois o vento afastava a enorme formação de fumaça que saía da casa. Assis, que permanecia por ali, ouviu a voz de um bombeiro que acabara de sair dos escombros da casa e falava ao seu superior:

– Senhor, foram encontrados três corpos carbonizados na parte onde era a sala!

O comandante da operação ordenou, então, em voz alta:

– Peguem as macas e retirem todos os corpos, e se possível continuem procurando por outros!

A casa estava completamente destruída. Móveis, tapetes, cortinas, sofás, camas, eletrodomésticos, tudo queimado! Paredes caídas, pavimentos desmoronados, assim como a casa, por completo, estavam a ponto de cair por terra. Vila Velha jamais vira tamanha explosão. Inclusive os quarteirões vizinhos, estavam às escuras, devido a um curto circuito no transformador que ficava ali perto. A única luz que banhava aquele bairro era produzida pela luz das chamas, que ninguém gostava de ver. As pessoas que moravam próximas, além de não entender, custavam a acreditar na desgraça que assolou e acabou com a vida daquela família, que sempre fora muito querida no bairro. Assis enxugou as lágrimas e, também não acreditando em seus olhos e ouvidos, direcionou-se para sua casa.





Primeira Parte



Capítulo 1



Guilherme comemorava com amigos num barzinho sua formatura em Biologia Marinha. O já mergulhador, e agora também biólogo, mergulhava em vários copos de chope para extravasar sua alegria, porém sua namorada Michelle brindava com suco de laranja, afinal, alguém tinha que dirigir até em casa. A alegria dos jovens formandos era contagiante! Eles cantarolavam, riam, falavam besteiras, brindavam por qualquer coisa, eram a sensação daquele barzinho na zona sul da cidade do Rio.

As horas passavam e foi chegando a hora de irem, Guilherme já não conseguia distinguir o unitário do múltiplo. Michelle pôs o bêbado no carro e dirigiu, ouvindo os últimos murmúrios que a embriaguez do rapaz resistia.

Até que chegaram ao apartamento que Guilherme morava de aluguel na Tijuca. Era um apartamento pequeno, apenas um quarto, sala, cozinha, banheiro e uma areazinha com tanque e secador, mas, como ele mesmo dizia, era bastante confortável. Guilherme tinha um gosto exótico e esotérico nas decorações – misturava quadros antigos com atuais, estatuetas egípcias, cristais, magos, duendes, gnomos, bruxinhas, tapetes indianos, que ele chamava de tapetes voadores, e cortinas de bambu. Os eletrodomésticos, somente o básico necessário, resumido a uma TV, um rádio gravador com CD, uma geladeira, uma máquina de lavar roupas, uma cafeteira elétrica e só. A sala se completava com dois sofás, uma mesinha no centro pequena e o quarto com um pequeno guarda-roupa e uma cama de casal, por imposição de Michelle, pois Guilherme nunca fez questão de abandonar o velho colchonete de acampamento. Na verdade, o rapaz nunca foi de ligar para as coisas de muito luxo, apesar de sua família ter uma boa situação financeira, os bens materiais, para ele, não faziam muito sentido.

Michelle acendeu as luzes e colocou o namorado na cama, o qual apagou no ato. Ela também estava cansada, tomou um banho e, quando foi se deitar, lembrou-se de ter chutado um pedaço de papel ao entrar no apartamento. Foi até a sala, pegou o papel, abriu e viu que se tratava de um bilhete. Mas o cansaço era maior que a curiosidade. Ela chegou ao quarto, sentou-se na cama, olhou o namorado que já dormia profundamente e, após uma tentativa de acordá-lo, já desistiu. Colocou o papel na mesinha de cabeceira, deitou-se e logo também pegou no sono.







Sexta-Feira, 21 de dezembro de 1990



Assis começou o depoimento na delegacia:



– Bom, moravam lá: Senhor Álvaro, Dona Sueli, três filhos; Guedes, de 29 anos; Gutenberg, de 25; Guilherme, de 21, que está no Rio de Janeiro. Também a avó, Dona Sandra, mãe de Dona Sueli, e a empregada Kátia, de mais ou menos 30 anos de idade.

Assis fez uma pequena pausa para suspirar a perda de seus amigos e prosseguiu:

– Dos parentes que conheço, que não estavam na casa no dia do acidente, só o Guilherme e o senhor Alves, irmão do senhor Álvaro, que Deus o tenha, ele e a todos da família.

E assim Assis terminou o seu depoimento. Após a angústia de falar dos patrões, ainda teve de ter presença de espírito para ouvir o detetive que estava no gabinete:

– Bem, delegado, foi constatado pela perícia que a explosão foi causada por um curto-circuito nos geradores de energia da casa. Isso depois daquele estranho blecaute que deixou Vila Velha às escuras e nenhum perito soube explicar o motivo. Bem, deu-se uma pane nos geradores e ocorreu a explosão que se intensificou, devido a um estoque de cinco botijões cheios de gás que estavam nas dependências da casa.

Assis escutava tudo com uma expressão muito triste, mas desabou a chorar quando o outro detetive entrou com o relatório dos corpos:

– Aqui está o relatório completo, delegado. São seis os corpos encontrados, todos já devidamente identificados. Os nomes e tudo o mais, está tudo aí no relatório.

O delegado Gregório leu o relatório e exclamou:

– É, de acordo com o depoimento do cidadão aí, “bateu”! São exatamente os familiares e mais a empregada, Kátia! A casa era grande, né?!

Realmente era um casarão. Na frente, uma larga varanda cercada por um quintal gramado com jardim, garagem para dois carros; nos fundos, uma piscina e área com tanque e varal. Dentro, começava com uma grande sala, depois passava para a cozinha, o banheiro, a saleta que servia de depósito para os botijões de gás e depois um corredor com uma porta que dava acesso aos fundos. No andar superior, cinco quartos para a família e hóspedes, e mais um menor de empregada. Uma belíssima casa que infelizmente verteu-se numa imensa bola de chamas, carbonizando tudo e todos que nela habitavam.

O delegado Gregório prosseguiu:

– Vamos ver se a gente acha o sortudo do tal Guilherme! Afinal de contas alguém tem que dizer para o rapaz que ele é órfão. Ah, vê se acha também o tio Alves!

Guilherme chegou da padaria trazendo pão, leite e queijo branco. Michelle ainda dormia. Ele deixou tudo em cima da mesa da cozinha e foi até o quarto. Beijou a namorada, dizendo baixinho:

– Acorda, amor, já comprei o café, vem.

Michelle espreguiçou-se, fez um charminho e perguntou:

– Que horas são, amor?

– Dez da manhã!

Eles namoraram um pouco e depois Michelle foi para o banheiro. Guilherme continuou na cama, seu olhar, de repente, recaiu sobre a mesinha de cabeceira e automaticamente avistou o papel em cima.

– Michelle – gritou Guilherme, já de pé com o papel na mão. – Que papel é esse que estava em cima da mesinha de cabeceira?

– Estava na entrada do apartamento, no chão. Encontrei ontem quando chegamos ¬– respondeu Michelle, também aos gritos.

O rapaz sentou-se no sofá e começou a ler o bilhete com letras datilografadas:

“Você não acreditou em mim, Guilherme!”

A sua família pagou, e pagou bem caro!

Nós fizemos um pacto e você abandonou tudo.

Você é um grande desgraçado, um pilantra!

Conseguiu o que queria, não é? Ótimo!

Depois não deu mais as caras! Safadeza, hein!

Agora estamos quites! Adeus!”



Guilherme ficou apreensivo e um pouco nervoso, porém não queria deixar transparecer para não incomodar Michelle com uma coisa que talvez pudesse ser brincadeira de mau gosto de alguém. Ele amassou o papel e jogou no lixo. Ela saiu do banho e juntou-se ao namorado à mesa da cozinha para tomar o desjejum. Depois a campainha tocou, e Michelle, ao atender, contemplou o rosto sério do porteiro, que disse:

– Recebi uma ligação lá na portaria de uma delegacia de Vila Velha, o número está anotado aqui neste papel, é para o senhor Guilherme ligar urgente!

Ela pegou o papel que tinha apenas um número escrito!

– Obrigado, eu dou a ele – ela fechou a porta e foi para a cozinha. – Tá ficando importante, hein? Primeiro um bilhete noturno, agora a delegacia de Vila Velha quer que você ligue urgente, inclusive tá aqui o número, mas o que dizia no bilhete que eu coloquei em cima da mesinha?

Guilherme respondeu indo para o banheiro:

– Nada de importante, era o senhorio me lembrando de pagar o aluguel.

– E a delegacia, o que eles querem? Você tem alguma encrenca que eu desconheço?

Michelle estava ficando exatamente do jeito que ele não queria, preocupada. Então Guilherme saiu do banheiro, colocou uma bermuda, uma camisa, tênis e procurou tranquilamente a namorada.

– Claro que eu não te escondo nada, Michelle. Não tenho ideia do que seja, só espero que meus irmãos não tenham se metido em alguma besteira. Bom, eu vou até lá e logo estou de volta, tchau, te amo!

Michelle não estava mais tão preocupada, mas ainda assim ficara uma pulguinha atrás de sua orelha. Porém, nem o rosto meio apreensivo retirava aquela transparente e singular beleza. Ela tinha cabelos lisos e compridos que iam de um castanho médio ao claro nas pontas. Sua pele era morena clara, media um metro e sessenta e nove, um pouquinho só mais baixa que Guilherme. Seu corpo era escultural, com zero de barriga e tudo isso combinava muito bem com um lindo par de olhos verdes. Realmente, o rapaz teve muito bom gosto na escolha.

Ele foi diretamente a um orelhão, colocou a ficha de DDD e ligou para a polícia de Vila Velha:

– Alô, é da polícia?

– É sim, quem fala?

– O meu nome é Guilherme, eu estou ligando do Rio. É que eu recebi um telefonema de vocês ainda há pouco e gostaria de saber do que se trata!

O delegado respirou fundo e começou:

– Senhor Guilherme, aqui quem fala é o delegado Gregório, é melhor tu vires para cá, porque a notícia não é das melhores para se dar por telefone!

Nesse momento Guilherme se viu num estado de aflição. Seu corpo trêmulo refletia o nervosismo que tomava conta do seu ser:

– Senhor delegado... Eu não vou agüentar o suspense... Por favor, fala, pode falar!

O delegado Gregório era desses típicos grosseiros, sem paciência e meio nervosão. Porém no momento estava calmo, mas não hesitou em usar uma linguagem sutil:

– O negócio é o seguinte: uma casa explodiu e através de um senhor que trabalhava pra família, descobrimos que infelizmente era a casa de sua família. Eu sei que vai ser difícil pra você, mas só restou você, rapaz! Estamos tentando localizar também o seu tio Alves pra... Alô, alô...

Guilherme desligou o telefone e passou a chorar desesperadamente. Sentou-se no meio fio, seu pensamento fervia latejando sua cabeça, pois agora a saudade que sentia nunca mais seria aliviada. Seu coração disparava, seu corpo transpirava, sua mente entorpecida de pavor e desespero cegava seus olhos e retirava todo o senso de razão, fazendo com que o seu corpo levantasse e saísse correndo pelo meio da rua movimentada, explodindo toda aquela pressão interior em um grito agonizante de dor. Alguns carros e um ônibus conseguiram frear, mas o Chevette que ultrapassava o ônibus não freou, e Guilherme já se precipitava por cima do capô, batia no pára-brisa e voava para o asfalto. O trânsito parou! As pessoas curiosas do ônibus olhavam a cena com aquela típica expressão de “oh!”. A moça saiu do Chevette e correu até o rapaz caído no asfalto. Dois homens, um que parara atrás do Chevette e o outro, ao lado, também foram ao local onde estava o rapaz. Guilherme rolava no asfalto de um lado para o outro gemendo com as mãos na cabeça. A moça, nervosa e chorando, falava:

– Meu Deus, eu nunca tinha atropelado ninguém, o que é que eu faço?

– A culpa não foi sua, ele saiu correndo no meio da rua feito um louco! Devia tá drogado ou bêbado! – Disse um dos homens.

– Ele tá se mexendo, não deve ter afetado a coluna, a gente ajuda a pôr ele no carro e você o leva pro hospital – sentenciou o outro homem.

Guilherme morava bem perto de onde ocorreu o acidente numa transversal ali da Haddock Lobo, rua muito conhecida no bairro da Tijuca, que era bem movimentada, mas como ainda era relativamente cedo o trânsito só engarrafou por causa do atropelamento e logo chegariam ao hospital.

Guilherme abriu os olhos e deparou-se com um belo rosto, moreno com longos cabelos cacheados. E a união, com os reluzentes olhos verdes, só não transmitiram a perfeição porque a expressão facial da moça era séria e de bastante preocupação.

– Oi, como você está?

Guilherme saiu momentaneamente da hipnose visual e se viu numa cama de lençóis brancos com uma faixa de atadura na cabeça e outra na coxa esquerda.

– Quem é você? – Perguntou com um toque de apreensão, mas carinhosamente.

– Meu nome é Suélen, eu atropelei você e te trouxe aqui para o hospital. Não se preocupe com nada, eu vou esperar você se recuperar e te levar para casa.

Guilherme sentou-se na cama, e a enfermeira entrou:

– Pelo visto já está bem, né?! Olha, rapaz, você deu sorte viu! Foi só a pancada, não quebrou nada. Quando estiver melhor, pode ir.

A enfermeira saiu. Guilherme recordou o acontecimento e começou a chorar.

Suélen, preocupada, perguntou:

– Você está sentindo alguma coisa? Quer que eu chame a...

Com uma das mãos espalmadas para a frente, Guilherme interrompeu a fala e ação da moça, que já ia saindo do quarto. Respirou fundo, enxugou as lágrimas e, após uma breve pausa, falou:

– A dor que eu sinto é no espírito! Quisera que fosse das pancadas.

Deu nova pausa e depois prosseguiu:

– Acabei de saber por telefone que a casa em que moravam meus pais e irmãos explodiu com todos dentro...

Novamente ele desabou a chorar, a moça, comovida com a situação, segurou a mão dele e também se emocionou:

– Eu sinto muito... – breve pausa. – Mas se acalma, fala comigo, desabafa.

– Meu nome é Guilherme, eu acabei de me formar em Biologia Marinha, estava todo contente e de repente me vem essa terrível notícia, mas eu não quero incomodar com mais isso. Eu não lembro como fui atropelado, mas tenho certeza de que você não teve culpa.

Suélen deu um sorriso e disse:

– Imagina, Guilherme, o mínimo que eu posso fazer é lhe dar uma força, claro, se você quiser, pode falar à vontade.

– Seu nome é parecido com o da minha mãe, ela se chamava Suely.

Guilherme contou sobre o bilhete, o telefonema e o desfecho da história. A moça, com certa curiosidade, perguntou:

– Mas você sabe quem escreveu o bilhete?

Guilherme sempre foi sensível e de alta percepção para determinar o caráter das pessoas. Aquela mulher o havia atropelado, o socorreu e ficara ali o tempo todo. E agora estava dispondo de atenção e tempo para ouvi-lo e depois levá-lo para casa. Óbvio que se tratava de uma boa pessoa.

– Acho que vai ser bom conversar sobre isso com alguém, e você me transmitiu uma certa segurança...

Ele segurou a mão dela e perguntou:

– Quer mesmo me ouvir?

Suélen olhou para o homem sentado à sua frente. Moreno claro, um metro e setenta e sete de altura, porte atlético, cabelos ondulados, olhos castanhos. Carinhosamente disse para ele que sim.

Então o rapaz, confiante, abriu seu coração e passou a narrar em detalhes toda a história que o havia conduzido até aquele ponto:

– Tudo começou quando eu vim para o Rio de Janeiro em 1986, pois havia passado no vestibular e aqui vim cursar a faculdade de Biologia. Aluguei um apartamento aqui na Tijuca, meu pai me ajudava com dinheiro até que eu concluí um curso de mergulhador, que fiz paralelamente à faculdade. Daí então comecei a trabalhar como fotógrafo aquático e não precisei mais tanto da ajuda do meu pai. Hoje já até tenho minha própria equipe de fotógrafos. Tudo estava muito bem até que, por distração, eu tirei uma nota baixíssima numa prova de grande importância. Saí da universidade arrasado! O mundo desabou em cima de mim. Entrei num ônibus e desci em Copacabana. Sempre gostei de meditar na praia. O dia estava nublado, a praia deserta, ideal para meu estado de espírito. Sentei na areia e comecei a pensar. De repente, uma voz rouca soou atrás de mim e despertei da meditação.

– É, tirar nota baixa a essa altura do campeonato não é nada bom, né?!

– Ele era branco, alto, cabelos longos e pretos. Usava jeans e um casaco fino, bege. O olhar dele era muito estranho, penetrante e indefinível. Ajoelhou-se à minha frente, cruzou os braços e continuou:

– E o que o levou a tirar essa nota ruim foi uma discussão com a namorada, né?

– Realmente ele poderia estar certo, pois eu havia discutido com minha namorada nesse dia. Porém já existiram outras ocasiões que discussões com namorada ou amigos não refletiam na minha vida universitária, mas ele falava com uma confiança que me sugestionou a ter como verdade a sua afirmação. Eu, curioso, impressionado, indaguei: Você é alguma espécie de adivinho? Quem é você? Ele praticamente ignorou minhas perguntas e continuou:

– Você precisa superar isso, Guilherme! Pode arruinar a sua vida, tanto no estudo quanto no trabalho, já pensou?

– Fiquei olhando seriamente para ele. Como sabia meu nome e que eu estudava e trabalhava. Eu estava assustado, porém tentando não transparecer, falei num tom enérgico, mais baixo: – Você está investigando a minha vida? Quero saber quem é você? – Dessa vez, ele rapidamente respondeu:

– Meu nome é Shisto, não estou investigando sua vida, apenas tenho o dom do saber, e procuro ajudar pessoas com alguma aflição. Agora preciso ir. Até logo, e digo assim porque logo nos encontraremos outra vez.

– Aquele estranho homem levantou-se e caminhou nas areias úmidas da beira do mar. E eu, após desfazer-me da nuvem de inquietação que se formou sobre minha cabeça, também levantei e fui embora. No outro dia, tive um dia normal no serviço e resolvi ir mais cedo para a faculdade. Meu horário no serviço é de sete ao meio-dia, depois ia para casa, almoçava e só estudava à noite. Nesse dia, fui para a faculdade à tarde para ficar estudando, porém, ao passar por uma praça a três quarteirões do meu prédio, lá estava o estranho cabeludo chamado Shisto. Ele estava sentado numa mesa de cimento que os idosos costumam jogar damas. Com um aceno ele me chamou e eu fui ao encontro dele meio desconfiado.

– Não disse que iríamos nos encontrar logo?

– Não estou entendendo qual é a sua! – Ele me olhava, como se estivesse querendo ler meus pensamentos e então disse:

– Não é terminando com sua namorada que os problemas irão acabar.

– Eu realmente havia pensado nessa possibilidade. Repeti o tom enérgico e baixo: – Quem é você para falar o que devo ou não fazer da minha vida e... – Ele me interrompeu:

– Calma, Guilherme, por favor, não fique impaciente. Simplesmente carrego esse dom comigo. As coisas vêm na minha mente e eu me sinto praticamente na obrigação de ajudar as pessoas. Sei que pareço um intrometido boçal! Mas o que posso fazer se sou dominado a fazer o bem convivendo no meio de tanta gente que é dominada a fazer o mal?

– Aquelas palavras maliciosas acabaram por derrubar o meu bloqueio e a mudar a expressão que eu passava ao meu interlocutor. Ele captou e se aproveitou daquele momento.

– Eu quero te ajudar, Guilherme!

– Ele levantou-se da mesa, pôs a mão no meu ombro e continuou a falar, como se fosse o grande amigo, confiável de anos e anos.

– Tem um lugar ali na floresta que é como um santuário para mim. Se confiar em mim, podemos ir até lá e poderei te ajudar da melhor maneira possível.

– Ainda com uma certa desconfiança tentei esquivar-me:

– Não dá Shisto, eu tenho aula às sete e...

– Mesmo que não tivesse essa aula, nessa hora você já estaria de volta a sua casa e eu só posso ajudá-lo agora de dia.

– Por quê?

– Não percamos tempo, Guilherme, vamos.

– Ele começou a andar e virou-se.

– Depois terá suas respostas, vamos, venha!

– Irresponsavelmente, tomei a atitude que mudaria a minha vida e a de todos que me cercam. Quando vi, já estávamos dentro de um táxi e descemos no início da trilha que vai pro pico da Tijuca. Ele pagou a corrida e logo precipitamo-nos trilha acima. Após meia hora de subida, chegamos a uma clareira e Shisto foi para um local de mata fechada, fiquei parado e ele reparou minha preocupação:

– Não se preocupe, Guilherme, são só alguns passos de mata fechada para manter a trilha que dá acesso à gruta escondida, vamos.

– Realmente, foram uns cinco ou seis metros de mata fechada e saímos numa pequena clareira com uma pequena trilha. Andamos por mais dez minutos e finalmente chegamos. Era uma gruta de pedra com uma abertura de uns sete metros de diâmetro. Havia alguns postes com tochas enfeitando a entrada e, ao lado de um deles, um sujeito com uma espécie de roupa vermelha e dourada parecia esperar-me:

– Como vai, Guilherme, entre.

– Havia tochas por toda a parte iluminando o interior da gruta. Ao fundo, não mais que dez metros da entrada, mais nove pessoas com o mesmo roupão vermelho e dourado estavam sentadas em volta de uma pequena fogueira. Quando me aproximei, todos me olhavam sorridentes e fui convidado a sentar-me na roda juntamente com Shisto e o homem que nos recepcionou na entrada. Na outra extremidade da roda estava um senhor de longos cabelos e barba branca. Sua expressão era séria e após um momento me olhando fixamente começou a falar:

– Bem Guilherme, há uma série de coisas que precisam ser explicadas para você. Você está curioso e desconfiado, com toda razão; afinal, Shisto pouco ou nada falou sobre nós e agora você aqui chega, uma gruta no meio do mato, pessoas em torno de uma fogueira com umas vestimentas estranhas. Shisto foi discreto por recomendação minha. Não mentiu, realmente iremos ajudá-lo, só omitiu o número de pessoas que compõem nosso grupo, penso que, do contrário, você dificilmente viria até aqui.

– Aproveitando a pausa do homem, tentei explicar-me: – Realmente estou pouco à vontade aqui. Parece que todos sabem de mim e nada sei de vocês. Por outro lado, Shisto falou coisas da minha vida e da minha mente que ninguém poderia saber e ele também soube dizer as palavras certas para alguém que precisava de ajuda. Contudo, ainda acho muito imprudente estar aqui. O senhor pode me explicar tudo isso?

– O homem com uma expressão mais pacífica começou:

– Meu nome é Arquimedes, talvez eu seja o último descendente dos druidas! Já ouviu falar dos druidas?

– Respondi que sim. Pois, por curiosidade, certa vez estudei sobre a cultura dos celtas. Os druidas eram uma mistura de sacerdotes, homens de leis, curandeiros, mas também eram descritos como bárbaros e cruéis, que praticavam rituais de sacrifícios humanos. Aprofundando-me no tema, descobri que existiu, na época, uma tentativa, que para muitos deu certo, de classificar o druidismo como os cruéis bárbaros malignos. Essa distorção levou a uma evasão dos druidas, que por motivos políticos espalharam-se e dividiram-se. A verdade é que os druidas eram magos, cientistas, sábios e justiceiros, pois os sacrifícios realmente existiram, mas só morria quem era julgado a tal. Em muitos autores que se propõem a escrever sobre o tema, diverge-se um detalhe aqui ou ali, mas todos concordam com o magnífico poder e sabedoria dos druidas. Arquimedes prosseguiu:

– Pois então, diante de tanta guerra, uma parte dos druidas resolveu que de nada adiantava a tentativa de pacificar os reinos. Sabíamos nos defender, mas parecia que as pessoas se negavam a ser ajudadas. Então entramos em embarcações e fomos para a América Central. Meus antepassados até que se adaptaram ao clima quente e por lá ficaram discretos até que os espanhóis, franceses e holandeses chegaram. Aí, outra separação. Alguns foram para o norte, outros para o sul. Um pequeno grupo veio para o Brasil e se instalou nas selvas amazônicas. Nesse grupo estava a minha família e aqui estou eu, hoje, no Rio de Janeiro. Órfão de pai e mãe, aos 25 anos. Agora tenho 65 e vivo minha vida com tudo que aprendi. Estes que aqui estão se tornarão os novos druidas, mas não com esse nome, para não chamar a atenção. E assim, com esse dom que temos, tentaremos ajudar a humanidade e acabaremos com as guerras, as doenças... Enfim, Guilherme, tentaremos trazer a paz, a paz que existiu em uma época muito longínqua de nosso passado.

– Até então, foi uma boa biografia, mas ainda queria saber o meu papel em tudo isso, por que eu? – respondeu Guilherme.

Arquimedes sem perder tempo explicou:

– Guilherme, como você constatou, nós temos a capacidade de saber! Saber o que as pessoas sentem, precisam, gostam, querem e nós temos poderes para ajudar essas pessoas. Nós queremos te ajudar, mas precisamos de energia! Sim, energia que, através da sua colaboração, nos dará a força de que precisamos para te proporcionar a ajuda de que necessita. Uma troca sem nenhum tipo de materialismo. Nada de dinheiro ou objetos de valor. Uma troca somente falando em energia.

– Arquimedes olhou o relógio, pois tinha um dourado, talvez de ouro, no pulso esquerdo – explicou Guilherme a Suélen.

¬ – Bem, já são seis da tarde, amanhã você volte que nós concluiremos as explicações de como nós o ajudaremos. Shisto o levará e amanhã, por volta das três da tarde, ele o estará esperando lá embaixo, de acordo?

– Respondi que sim. Levantei-me, despedi-me de todos e, quando Shisto e eu íamos saindo gruta afora, Arquimedes projetando sua potente voz bradou:

– Guilherme, amanhã quando vier, traga-nos uma galinha viva. E não se preocupe, pois não se trata de ritual espírita!

– Realmente fiquei intrigado, uma galinha viva! Porém não deixei minha preocupação ser captada por Shisto, que me acompanhou até o pé da trilha e ali disse que me esperaria no dia seguinte. Despedimo-nos com um aperto de mão e normalmente, como de costume, fui para a faculdade, depois para casa e, como estava brigado com minha namorada, não tive ninguém para conversar ou comentar o assunto. No dia seguinte, após o trabalho, comprei a galinha e às três da tarde deparei-me com Shisto, no pé da trilha, me aguardando.

– Gostei da pontualidade! – Única exclamação de Shisto que, após pegar a galinha e trancá-la numa gaiola de madeira que trouxe, não disse mais nenhuma palavra.

– Chegamos à gruta e, dessa vez, reparei algumas inscrições nas paredes. Cumprimentei a todos, depois nos sentamos ao redor do fogo e Arquimedes começou:

– Bem, Guilherme, a partir de hoje, nós vamos te ajudar e também vamos querer sua ajuda. Vou agora esclarecer a você a verdade que ficou omitida em nosso primeiro contato ontem.

– Fiquei um pouco apreensivo, mas me controlei e fixei minha atenção nas palavras daquele velho de longos cabelos e barba branca.

– Você não poderá dizer a ninguém da nossa existência. A gente vai se encontrar aqui, todos os dias, nesse horário, você receberá a ajuda de que tanto necessita, sua vida ficará maravilhosa com tudo o que deseja. Estará sempre protegido de qualquer ameaça, seja ela física, mental ou espiritual.

– Aproveitei a pausa e saciei minha curiosidade: – Ontem, quando perguntei por que vocês escolheram a mim, o senhor respondeu que era porque eu tinha problemas e aí me ajudaria. Mas existem milhares de pessoas com problemas até muito piores e mais graves do que os meus. Pessoas envolvidas com drogas, doenças, crimes, maridos e mulheres traídos, endividados, enfim, se pensarmos nos verdadeiros grandes problemas do mundo cotidiano, os problemas de um universitário que tirou uma nota baixa e tem sua vida amorosa enrolada não são nada, comparando a tudo isso. Arquimedes coçou a barba e falou:

– Sabendo de sua inteligência foi que decidi hoje esclarecer a você a verdade, não que nunca lhe esclareceria, mas queria conhecê-lo melhor pessoalmente antes. Mas correria o risco de você achar que o estaríamos traindo por não falar e por fim resolvi contar-lhe tudo hoje mesmo.

– Houve uma pausa, o silêncio era absoluto, parecia até que os pássaros e animais da floresta também se calaram para ouvir o druida:

– Você nasceu no dia 2 de fevereiro de 1969, era sexta-feira, 11 horas da noite, chovia. Naquele exato momento o universo resolveu fazer um alinhamento planetário que canalizava toda a energia de que precisamos para nossa sobrevivência. Dois sistemas solares ficaram alinhados e, nos exatos segundos desse alinhamento, uma linda criança no planeta Terra veio ao mundo físico, saindo do útero materno. E, dessa forma, essa criança recebeu o dom de toda essa canalização energética. Em todo o planeta, nasceram crianças nesse mesmo período, mas, no momento exato do alinhamento e da canalização de energia, só uma! A mãe, com os olhos cheios de lágrimas, batizou com o nome de Guilherme. Só você pode nos abençoar a vida e somente nós podemos ajudá-lo no seu emprego, na sua faculdade e na sua vida. Estou lhe dizendo isso, não como algum tipo de ameaça. Se você decidir descer aquela trilha e não voltar nunca mais, poderá fazê-lo. Nós viveremos com dificuldades, mas eu lhe disse isso porque sei o que o futuro lhe trará na vida e por isso sei que também posso ajudá-lo.

– Eu fiquei completamente perplexo! Como alguém poderia saber tanto a meu respeito, a ponto de até concluir o mês, a hora e os segundos do meu nascimento de forma incrivelmente precisa! E também a coisa do alinhamento planetário... Jamais pensei ter nascido num momento tão especial. Aos poucos, ia me acalmando e me conformando que realmente eles eram seres sobrenaturais. Meus pensamentos naquele momento confundiam minha razão. Estaria realmente Arquimedes falando a verdade sobre o alinhamento dos dois sistemas solares? Como eu os ajudaria com a energia? Bem, me sacrificar, acho que não, pois também ele prometera ajudar na minha vida futura, mas se fosse só para conquistar minha confiança? Seria ele realmente um descendente druida ou um extraterrestre? Ou um simples maluco com poderes especiais? O fato era que, seja lá quem fosse, para saber tanto e com tanta riqueza de detalhes sobre tudo que ouvi, era bastante poderoso. Eles realmente poderiam me ajudar, eu estava mesmo precisando de uma ajuda. Não que eu estivesse no fundo do poço, mas não vi motivo para sair dali e simplesmente ignorar a coisa mais extravagante e impressionante que já teria vivido até aquele momento. Então eu concordei e Arquimedes explicou de que forma eu iria ajudá-los.

– Terá que vir aqui sempre, participar de uma pequena cerimônia, que é de nosso costume, e sempre será informado o que deve trazer para a próxima reunião.

– Sendo assim, a partir do dia seguinte, comecei a frequentar a tal cerimônia, que começava com um zum-zum-zum, depois uns nomes enrolados em um idioma que eu desconhecia, talvez na linguagem celta, mas não conseguia saber ao certo. O timbre da voz também mudava e ficava mais grave, nem parecia voz humana, porém não gritavam. Depois jogavam um tipo de erva na fogueira e a gruta ficava toda enfumaçada. Eu sempre bebia um gole de um chá que era passado por todos na roda, era meio esverdeado, mas não tinha nem gosto e nem cheiro. Realmente, daquele dia em diante, minha vida foi tomando outro rumo. Na faculdade, as notas eram altas. No trabalho, era superprodutivo. Meu relacionamento afetivo, com minha namorada, estava ótimo. Eu só estranhava as coisas que Arquimedes me pedia para levar e não me explicava o porquê! Me pedia mais galinhas, correntes, cordas, barbantes, fios de nylon. Nas cerimônias, eu me sentia bem, ficava meio tonto devido à fumaça e sentia vontade de beber o chá, acho que eu estava me apegando a eles. Até que no ano passado, Arquimedes me deu um lindo cordão de ouro com um pingente que simbolizava o seu grupo de druidas, porém me avisou que eu não o mostrasse a ninguém, nem à minha namorada, podendo tirá-lo em determinadas ocasiões. Mas, para minha sorte, e digo hoje sorte, pois no dia foi um ato imperdoável de distração e ingenuidade, um amigo da faculdade deu uma festa na casa dele, eu estava com o cordão por baixo da camisa, e com a animação da festa até me esqueci dele. Foi quando todos entraram na piscina, e eu acabei caindo também por livre e espontânea pressão. Ao sair todo ensopado, tirei a camisa e a torci para não ficar tão molhado. Nesse momento, um rapaz de óculos olhava fixamente para mim, a princípio pensei tratar-se de um... rapaz alegre, sabe, mas logo a seguir notei que ele olhava atentamente para o cordão em meu pescoço. Então virei e fui até o banheiro, me sequei, peguei uma roupa seca emprestada do meu amigo e saí. Foi quando o rapaz de óculos me parou e com expressão séria perguntou:

– Desculpe-me, você é de alguma seita?

– Seita, eu, que seita? Do que você está falando? – Fiquei muito confuso, ele prosseguiu:

– Esse cordão que você está usando. Bem, é que nós não nos conhecemos, mas eu sempre te vejo com meus outros amigos lá na faculdade, eles falam que você é um cara legal e eu não imaginava que componentes de seitas de adoração ao diabo fossem caras legais!

– Então fiquei mais confuso ainda: – Do que você está falando, quer ser mais claro, por favor?

– Bem, desculpa a minha indiscrição, mas foi até coincidência, pois eu estou fazendo uma pesquisa sobre seitas de adoração ao diabo para uma revista e eu sei que o pingente do seu cordão simboliza uma. Tudo bem se você não quiser falar a respeito, mas, pra mim, você não precisa disfarçar. Porém, depois você poderia me dar uma entrevista secreta e anônima? Vai ficar excelente, na pesquisa, a entrevista de um adepto!

– Nesse momento, o efeito de todas as cervejas que eu tinha bebido evaporou-se, peguei o rapaz pelo braço e fomos até a sala. Sentamo-nos no sofá e então esclareci a ele: – Você tem certeza mesmo do que está falando? Porque se você estiver certo eu estou sendo enganado! – O rapaz pareceu preocupado:

– Meu Deus, então eles estão te enganando! Se você quiser podemos ir até a biblioteca do Richard, um amigo meu que estuda isso há um tempão, sem ele a minha pesquisa não galgaria nem os primeiros degraus. Ei!

– Levantei-me e fui direto para casa. Ao deitar no travesseiro, fiquei pensando: Será que fiquei compactuando com uma seita de adoradores do diabo durante esses últimos três anos? Não, não, aquele idiota é louco! Então, no outro dia, o orgulho e a vergonha de ter sido enganado falaram mais alto. Era mais fácil aceitar que o rapaz de óculos era um idiota, e ninguém melhor que meu velho amigo e mestre Arquimedes para confirmar isso. No dia seguinte, quando fui à reunião na gruta, contei minhas dúvidas para o Arquimedes. Ele, após ouvir meu relato, me levou para fora da gruta e mandou-me sentar em uma pedra. Ficou andando de um lado para o outro, com as mãos para trás e, demonstrando um nervosismo ponderado, começou:

– Guilherme, você não podia deixar ninguém ver o seu cordão.

– Com isso você abalou as nossas energias e você precisa delas agora mais do que nunca! Daqui a um ano você se forma e também já está há bastante tempo conosco para desconfiar de alguma coisa! Esse pingente parece, mas não é isso que o seu colega falou, entendeu! Assunto encerrado! Nunca pense em nos trair, Guilherme, somos uma família. A traição vem do erro e todos que erram são castigados. Você errou pela primeira vez, não será castigado! Mas, não erre de novo, e assim não traia, ou será castigado!

– Aquela conversa me deixou bastante assustado, mas naquela altura, o meu comprometimento com o grupo era muito grande. Não podia nem sequer pensar em abandoná-los, principalmente depois da severa ameaça. Qual seria o tal castigo? Aprisionamento? Tortura? Morte? Por outro lado, psicologicamente eu me sentia tão dependente deles como um drogado de sua droga. Teria todo um ano de faculdade pela frente e sem a energia deles eu não conseguiria. Não me formaria. Então pensei, me formo e pronto, peço licença e saio do grupo civilizadamente, sem traição e sem culpa. E assim tudo voltou ao normal. Todas as noites eu ia para a reunião e levava as coisas que ficavam cada vez mais estranhas: rato vivo, sangue de laboratório, até terra de cemitério tive que levar certa vez. E nas reuniões, que antes eram com os participantes sentados, agora os membros ficavam de pé, dançavam, um gritava, outro gargalhava, outro chorava. Ao total éramos doze, sendo dez homens e duas mulheres. Um dia desses, no final de uma cerimônia. Arquimedes me chamou num canto e me falou eufórico e sorridente:

– Está dando certo, Guilherme, as energias estão circulando e estamos ganhando força. Em breve, poderemos receber a visita espiritual de um grande antepassado. E você é parte fundamental nesse contato!

– Tudo estava cada vez mais estranho, eu já não tinha mais a confiança que tinha no início. Entretanto, as notas eram as melhores da classe na faculdade e no trabalho ganhei cargo de chefe de equipe. Só que quando colocava a cabeça no travesseiro minha consciência era tomada de uma grande inquietação. Os meses passaram, mas eu não consegui esquecer as palavras do rapaz de óculos: “Seita de adoração do diabo.” Será que ele tinha razão e eu estava sendo enganado todo esse tempo? Resolvi procurar o rapaz de óculos, assim, teria certeza se o pingente era ou não uma representação satânica. Não foi fácil achar o rapaz! Tiago, o dono da casa em que aconteceu a tal festa, onde conheci o rapaz, não conseguia se lembrar, por mais que tentasse, de alguém usando óculos com a descrição que fiz. – Pelo amor de Deus, Tiago, será possível que você não se lembra dos seus próprios convidados? Ele é branco, um pouco mais baixo que eu, cabelo liso penteado para o lado, ficava sempre afastado da bagunça, ah, ele usava óculos! – Enfim, Tiago lembrou-se:

– Ah! Sei, mas eu não o conheço, ele veio porque o Leandro me pediu, e lógico, eu não ia barrar o cara.

– Então fui à casa de Leandro, a mãe dele me recebeu:

– Olha o Leandro está lá no Clube. Tem meia hora que foi, acho mais fácil você encontrar com ele lá.

– Agradeci a dona Alzira e, finalmente, após rodar por 20 minutos no clube, encontrei o Leandro e, por sorte, pelo menos daquela vez, o tal rapaz estava em sua companhia. Cumprimentei-os e o rapaz lembrou-se de mim na hora. Então me desculpei: – Desculpe-me por não ter ficado mais tempo na festa, mas eu estava com algumas coisas para fazer. Inclusive eu queria conversar melhor sobre aquele assunto contigo. – Além de simpático, ele foi superprestativo. Fomos conversando, ele disse se chamar Paolo, estava cursando medicina e me levou até a casa de Richard, onde tomamos um drinque e fomos os três para a biblioteca.

– Vamos ver, mostre o pingente, Guilherme. Vamos compará-lo com os símbolos deste livro.

– E finalmente encontramos, dizia o livro: “Satanista da nova dinastia”, “Culto a entidades Satânicas cujo objetivo é trazer ao mundo físico o ser maligno que só encarnará no indivíduo que carrega consigo a maldição das linhas planetárias”. – Fiquei paralisado de pavor! – “... e a encarnação se dará na época dos alinhamentos planetários que será em 1991, nas primeiras horas do ano”. – Então, juntando uma coisa à outra, tudo fazia crer que eu era o amaldiçoado e o ano seria aquele. Tudo fazia sentido com o que estava no livro. As cerimônias diurnas com o amaldiçoado, as cerimônias noturnas entre eles, da qual eu nada sabia e segundo o livro não deveria saber mesmo. Falava dos rituais de sangue com animais, bruxarias, magias negras. Realmente a coisa era séria! Agradecemos a ajuda de Richard, saímos e Paolo convidou-me a um barzinho para relaxar aquela tensão. Então falou:

– A coisa lá deve pegar fogo mesmo à noite!”

– Com certeza! À noite é que eles devem matar as galinhas, os ratos e fazem os tais rituais de sangue. – Após uma pausa para alguns goles, respirei fundo e falei:

– Paolo, você teria coragem de ir lá comigo à noite, escondido, para ver o que realmente acontece? – Para meu espanto, aquele rapaz de aparência frágil estufou o peito e mostrou uma coragem que nem eu sabia se realmente tinha e topou na hora. Munidos de lanternas, canivetes, etc., usando roupas escuras, às nove da noite já estávamos subindo a trilha. A noite estava escura, em plena lua nova, porém o céu estava repleto de estrelas. Chegamos à clareira, entramos na mata fechada e logo estávamos na pequena trilha que dava na gruta. Andávamos com a silhueta baixa, e logo avistamos a gruta. Desligamos as lanternas e fomos lentamente até lá. Foi um momento de muita tensão! Fiquei com receio por um momento, mas fomos em frente. Entramos! Estava escura, não havia ninguém, vasculhamos com as lanternas e nada. Porém, no escuro, numa última olhadela, notei um pequeno ponto de luz no fundo da gruta. Mostrei a Paolo e fomos naquela direção. Tratava-se de uma pequena abertura entre duas pedras que nos revelou um quarto secreto dentro da gruta, o qual eu nunca soube da existência. Empurramos a pedra só um pouco, apenas para espiar as cenas macabras que jamais esquecerei: as duas mulheres nuas, os homens derramavam um líquido vermelho, acho que era sangue dos animais, nos corpos femininos e em seguida lambiam. Outros comiam os animais mortos, era horrível! Arquimedes observava tudo sorrindo e, em profundo silêncio, de repente o velho deu um grito estridente e emendou com uma gargalhada tenebrosa. Foi o suficiente para fecharmos a fenda de pedra e nos afastarmos daquele antro maldito. Aquele compartimento secreto tinha uma pequena abertura de acesso à gruta, mas por dentro era grande, mais ou menos do tamanho da metade da gruta. Já de volta na trilha principal de descida, Paolo me perguntou preocupado:

– Guilherme, será que não tinha alguém vigiando?

– Não, não, eu contei, estavam todos lá, inclusive Shisto, que degustava o sangue lambuzado no corpo de uma das mulheres! –Então Paolo disse uma coisa que eu também havia sentido, mas não quis falar para não preocupá-lo:

– É que eu estou com aquela sensação de que estão nos espiando.

– Para dizer a verdade, eu também. – Ventava. Antes o céu estava estrelado, agora está nublado. – Não sei se você conhece aquela região, Suélen, mas onde eu estava com o Paolo era estreita e de mata fechada, em vários trechos não dá nem para ver o céu. De repente, em um desses trechos, uma forte luz apareceu por entre as árvores. Aceleramos ainda mais a descida, pois não fazíamos ideia do que era aquilo. Estava acima de nós e não emitia nenhum ruído. E para nosso espanto, aquilo era uma bola de luz! Apareceu entre duas árvores! Tenho um certo interesse por ufologia e, de acordo com algumas leituras sobre o assunto, a bola de luz tratava-se de um objeto voador não identificado de origem desconhecida, supostamente extraterrestre. Mais ou menos sete metros de diâmetro, ela ficava todo o tempo sobre nossas cabeças, nem precisávamos mais das lanternas, pois a luz do objeto já clareava tudo ao redor. Já tinha visto antes por duas vezes, uma em Morro de São Paulo, na Bahia e outra vez, lá mesmo em Vila Velha, mas nunca assim tão de perto. O vento estava mais forte, não sabia se por acaso ou por causa do objeto, então, numa pequena clareira, observei um vão debaixo de uma rocha: – Vamos, Paolo, ali debaixo! – Não falei ao Paolo, mas eu temia uma abdução, pois já li muitos casos de sequestro, só nunca pensei que um dia eu passaria por um. Ficamos ali uns 20 minutos e a bola de luz ficou lá nos observando todo esse tempo, até que, numa velocidade impressionante, subiu e desapareceu. O vento diminuiu e tudo estava escuro novamente. Acendemos as lanternas e continuamos a descida mais tranquilos, mas dando umas olhadas para cima de vez em quando! Chegamos ao asfalto, pegamos um táxi e cada um foi para sua casa. Aquela data também ficou marcada na minha vida, sábado, 13 de outubro. Nunca esquecerei! Estava me sentindo como um bicho acuado. Não queria por os pés naquela gruta nunca mais, mas por outro lado, além de medo, precisava deles, pelo menos por mais dois meses. Continuei indo lá, até que, no dia 15 de dezembro, sábado, Arquimedes me chamou para conversar:

– Bem, Guilherme, sua prova final é daqui a quatro dias e, como prometemos, você se sairá formidável, vai diplomar-se em Biologia. E isso, graças às nossas trocas de energias. Na última noite deste ano, receberemos a visita espiritual de um grande druida, você o conhecerá, e as energias que acontecerão serão inimagináveis.

– Dia 19 de dezembro, outra data marcada na minha vida. Nesse dia, não fui trabalhar, fiquei estudando por toda a manhã para a última prova, só parei às duas da tarde para tomar um banho, comer alguma coisa, me arrumar e, pela última vez, pôr meus pés naquela maldita gruta. Quando cheguei lá, todos estavam felizes, então Arquimedes me contou:

– Recebemos um sinal, Guilherme, Shulier nos congratulou!

– Quando ouvi aquele nome pronunciado com tanto ênfase por Arquimedes, um arrepio tomou conta de todo meu corpo. Meu coração acelerou e ,sem entender o porquê, quase desmaiei, tive que me apoiar em uma pedra para não cair, olhei para o velho, mas ele, ao que me pareceu, não percebeu o meu mal-estar, porque naquele momento um dos membros ali presente o chamou para falar sobre alguma outra coisa. Quando se voltou para mim, eu já havia recobrado o ânimo e tentei ficar normal. Então, sem que eu pudesse entender, Arquimedes me pegou pelo braço e conduziu-me ao fundo da gruta, empurrou a pedra e mostrou-me o tal compartimento secreto.

– É aqui, rapaz! Aqui fazemos as cerimônias noturnas, aqui receberemos a visita de Shulier na noite do dia 31, e essa será a data que você, Guilherme, fará parte de nosso cerimonial noturno e dará início ao seu druidismo.

– Mal sabia ele que eu já sabia que aquela conversa de druida era para me enganar, ele queria era meu corpo para encarnação do tal que me recuso a pronunciar o nome.

– Calado entrei, calado saí do compartimento secreto. Arquimedes fechou a entrada, fez-me a cerimônia, que eu já sabia ser só fachada para me impressionar, porque a cerimônia para valer era a noturna. Quando acabou, normalmente peguei minha mochila, me despedi de todos e notei Shisto me olhando muito sério, então ele me chamou e disse:

– Eu não sei por que, mas alguma coisa... Bem, não é nada. Ah, boa prova e não vacile!

– Esse não vacile soou seco, frio, de modo a entender que não era para não vacilar na prova e sim não vacilar com eles. Então, desci a trilha, fui para a faculdade, fiz a prova maravilhosamente, voltei para casa, dormi tranquilamente. No outro dia, trabalhei normalmente e, quando estava no barco no meio da Baía de Guanabara, peguei o maldito cordão e atirei nas profundezas. Nesse momento, o pessoal da equipe não entendeu nada quando escutaram eu gritar “estou livre”, eles riram, eu não falei nada e ficou por isso mesmo. Fui a um salão, cortei o cabelo, à noite fui pegar o resultado na faculdade e em seguida saímos para comemorar. Depois teve o bilhete, o recado, o telefonema e aqui estamos...”

Guilherme aliviou o peso de sua alma. O fardo pesava ainda mais, pois, além de ele ter feito parte de uma seita por quatro anos, sua família toda pereceu por causa disso. Desabafar com alguém era fundamental para que a mente reagisse uma retomada de equilíbrio; caso contrário, o organismo poderia responder de forma desastrosa, que ia da depressão à morte.

Já era noite, Suélen deixou Guilherme na porta de casa:

– Toma, aqui está meu cartão. Depois que você resolver esses problemas e quiser conversar mais, é só me procurar!

– Muito obrigado, Suélen, você foi muito amiga, e olha só nos conhecemos há algumas horas. Com certeza, futuramente vamos continuar essa amizade.

Despediram-se com beijos no rosto e Guilherme entrou no prédio. O porteiro logo se assustou:

– Rapaz, o que houve contigo? Sua namorada estava louca de preocupação, disse pra você ligar para ela assim que chegasse. Mas o que houve?

Guilherme, após dizer ao porteiro o acontecido, virou-se e, com dificuldade, pois sua perna esquerda doía, foi ao orelhão e ligou para Michelle:

– Amor, eu sei que você está preocupada, mas é que aconteceu...

Michelle o cortou:

– Preocupada! Guilherme, você sabe a hora que você saiu para telefonar? Eu fui à rua atrás de você, perguntei às pessoas e ninguém tinha visto você, fui ao mercado, à padaria e nada. Fiquei aí na sua casa até quase anoitecer, até agora não consegui comer nada de tão preocupada.

– Amor, me desculpa, por favor, é que eu recebi um telefonema, uma notícia trágica...

– Meu Deus, o que aconteceu amor?

– A casa dos meus pais... – Guilherme soluçou e as lágrimas retornaram – explodiu e... Todos morreram, amor! Eu fiquei mal e, quando dei por mim, estava numa cama de hospital. Eu fui atropelado na Haddock Lobo! Sorte que a moça que me atropelou me socorreu e depois me deixou aqui.

Michelle, que também chorava do outro lado da linha, falou:

– Amor, me perdoa, meu Deus, tudo isso acontecendo e eu falando de mim, vou para sua casa agora mesmo!

Os dois conversaram bastante, porém Guilherme não achou o momento adequado para falar para Michelle sobre a seita e também estava cansado demais, poderia esquecer um detalhe ou outro e não seria justo para com a namorada. Deitaram-se e dormiram abraçados.

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